As relações entre pessoas e animais podem ser complexas, já que cachorros, gatos, pássaros, bichos domésticos ou domesticados são tratados como membros em muitas famílias.
Em quase 30 anos de existência, o Superior Tribunal de Justiça já julgou muitos processos que envolvem o relacionamento entre seres humanos e animais.
Alguns casos representaram avanços na jurisprudência da corte para acompanhar a evolução das leis de proteção ao meio ambiente, como o entendimento de que animais silvestres mantidos fora de seu habitat por longo tempo não devem mais ser retirados de seus donos.
Em certos julgados, os animais aparecem como protagonistas de controvérsias tipicamente humanas, a exemplo do recente processo em que o tribunal estabeleceu direito de visitas a uma cadela objeto de disputa por casal que se separou.
Outras decisões da corte fixaram entendimento capaz de apaziguar a convivência entre vizinhos. Para o STJ, havendo conflito sobre a presença de animais em apartamentos, deve prevalecer o ajustado na convenção do condomínio.
Papagaio de estimação
O papagaio Leozinho, criado como bicho de estimação havia mais de 17 anos por dona Izaura, em uma cidade do sertão nordestino, foi alvo de uma disputa judicial que foi parar no STJ.
O caso ganhou grande repercussão na imprensa em 2017, depois que o tribunal assegurou à idosa o direito de manter em sua posse o papagaio de estimação, ao julgar o REsp 1.389.418.
O pássaro foi ameaçado de apreensão em 2010, quando um fiscal do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) o encontrou na casa de dona Izaura, no município de Cajazeiras (PB). Preocupada com o destino do papagaio, ela entrou na Justiça para manter o animal em sua posse.
Argumentando que a manutenção do papagaio com a idosa incentivaria o tráfico e a captura de animais silvestres no Brasil por sugerir que o cativeiro de aves é um costume arraigado no país, o Ibama pediu ao STJ que a apreensão fosse permitida.
A corte negou o pedido e assegurou à dona Izaura o direito de manter Leozinho. Segundo o relator do caso, ministro Og Fernandes, a decisão enfocou exclusivamente o caso concreto — examinado e decidido com base no direito aplicável e na jurisprudência consolidada no STJ.
Isso porque a corte tem admitido na sua jurisprudência a manutenção em ambiente doméstico de animal silvestre que já vive em cativeiro há muito tempo, ainda mais quando as circunstâncias do caso concreto, analisadas nas instâncias ordinárias, não recomendem o retorno do bicho ao seu habitat natural.
Para o tribunal, a legislação deve buscar a efetiva proteção dos animais, finalidade que também deve ser observada pelo julgador ordinário (clique aqui para acessar a Pesquisa Pronta sobre o assunto).
Direito de visita
Para o STJ, os animais em geral, como os cães de estimação, estão enquadrados na categoria de bens semoventes — suscetíveis de movimento próprio e passíveis de posse e propriedade.
Em julgado recente, afirmou-se que os bichos não podem ser considerados meras “coisas inanimadas”, pois merecem tratamento peculiar em virtude das relações afetivas estabelecidas pelos seres humanos com eles.
Com base nesse entendimento, decisão inédita foi tomada em junho deste ano pela 4ª Turma, que considerou ser possível a regulamentação judicial de visitas a animais de estimação após a separação de um casal.
O caso envolveu uma cadelinha yorkshire. O colegiado confirmou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que fixou regime de visitas para que o homem pudesse conviver com a cadela, adquirida durante o relacionamento, e que ficou com a mulher depois da separação.
O relator, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que, em casos como esse, é necessário analisar a situação concreta buscando sempre a proteção do ser humano e de seu vínculo afetivo com o animal.
“Buscando atender os fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, independentemente do nomen iuris a ser adotado, penso que a resolução deve, realmente, depender da análise do caso concreto, mas será resguardada a ideia de que não se está frente a uma ‘coisa inanimada’, mas sem lhe estender a condição de sujeito de direito. Reconhece-se, assim, um terceiro gênero, em que sempre deverá ser analisada a situação contida nos autos, voltado para a proteção do ser humano e seu vínculo afetivo com o animal”, afirmou Salomão.
O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
Farra do Boi
O Habeas Corpus é uma garantia constitucional para o direito de ir e vir. Esse direito, no entanto, é afiançado na Constituição Federal apenas para os seres humanos, não sendo possível assegurá-lo para os animais.
Em 2017, o STJ recebeu um pedido inusitado: a Associação Catarinense de Proteção aos Animais impetrou Habeas Corpus com o objetivo de proteger dois bois resgatados da Farra do Boi, prática proibida e considerada crime desde 1998, quando foi editada a Lei 9.605.
Os pacientes do HC, os bois Spas e Lhuba, foram resgatados pela entidade protetora dos animais e conseguiram autorização judicial para ficar sob a tutela da Comissão de Defesa Animal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Porém, a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina conseguiu na Justiça uma decisão para que fosse feito o abate imediato dos animais, alegando tratar-se de medida sanitária. Para tentar reverter a situação, a entidade impetrou o HC.
Ao negar o pedido feito no HC 397.424, o relator, ministro Gurgel de Faria, esclareceu que a Constituição Federal não incluiu entre as hipóteses de cabimento do Habeas Corpus a preservação do direito de ir e vir de animais.
Morte da bezerra
A morte de uma bezerra adquirida para fins de melhoramento genético de rebanho, comprada em um leilão televisionado, pelo valor de R$ 18 mil, também virou assunto de decisão proferida pelo STJ no REsp 1.550.520.
O pecuarista que adquiriu o bovino alegou tê-lo recebido com problemas de saúde. Tempos depois, a bezerra morreu. Ele então suspendeu o pagamento das parcelas do contrato de compra e venda que ainda iam vencer, o que levou a vendedora a negativá-lo nos cadastros de restrição de crédito.
O comprador decidiu entrar na Justiça pedindo a rescisão do contrato de compra e venda, a restituição dos valores pagos e uma indenização por danos morais. A sentença entendeu pela incidência do Código de Defesa do Consumidor e inverteu o ônus da prova em favor do comprador, o que foi reformado pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso.
Na tentativa de reformar o acórdão do TJ-MT, o comprador recorreu ao STJ. Ao negar o recurso, o relator, desembargador convocado Lázaro Guimarães, explicou que o tribunal de origem afastou a incidência do CDC no caso, pois o animal adquirido seria usado para melhoramento genético do rebanho. Guimarães disse não ser possível alterar o acórdão, por causa da Súmula 7 do STJ.
Ataque de cachorro
Tido como melhor amigo do homem, companheiro fiel, protetor e afetuoso, o cachorro certamente não goza do mesmo conceito entre os carteiros. Ele é um dos principais causadores de acidentes de trabalho para os funcionários da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT).
Recentemente, o STJ analisou um caso que envolveu o ataque de cão da raça pit bull a um carteiro no Paraná. Enquanto o carteiro trabalhava, o cachorro pulou o muro da casa onde vivia e atacou o homem de 63 anos. O ataque aconteceu na cidade de Santo Amaro da Imperatriz (SC) e deixou o carteiro gravemente ferido.
A vítima teve a perna direita muito machucada e precisou passar por cirurgia. Em decorrência das lesões, o carteiro foi aposentado por invalidez. As despesas médicas — que totalizaram R$ 17.784,15 — foram custeadas pelo plano de saúde dos Correios.
Na tentativa de reaver os valores, a ECT ajuizou ação contra o dono do animal, mas o Tribunal Regional Federal da 4ª Região julgou o pedido improcedente. A empresa recorreu então ao STJ.
O ministro Luis Felipe Salomão, relator do REsp 1.379.885, explicou não ser possível modificar a decisão porque o pedido de ressarcimento dos valores não deveria ter sido feito pela empregadora do carteiro — a ECT —, e sim pela pessoa jurídica do plano de saúde.
Condomínio
Quem mora em condomínio sabe que a presença de animais de estimação costuma gerar muitas desavenças. O STJ tem orientação jurisprudencial segundo a qual, em caso de disputa, deve prevalecer o ajustado na convenção de condomínio acerca da possibilidade de criação de gatos, cachorros ou outros animais de estimação em apartamento (AREsp 676.852).
Em um caso analisado pelo tribunal, o condomínio queria proibir a permanência de um cachorro pertencente a um dos moradores, sob a alegação de que a convenção proibia a presença de animais que comprometessem a higiene e a tranquilidade do edifício.
Para o relator, ministro Raul Araújo, a convenção do condomínio não vedava expressamente a criação de animais pelos condôminos. Além disso, a conclusão do Tribunal de Justiça sobre não haver provas de que o cão representasse ameaça à higiene ou à tranquilidade do prédio não poderia ser revista pelo STJ em recurso especial.
“Reconhecer, como ora postulado, que o agravado deixou de observar cláusula da convenção condominial, bem como que a presença do animal, por si só, compromete o sossego, a tranquilidade, a salubridade e a higiene do condomínio, demandaria a interpretação da convenção do condomínio e o revolvimento do suporte fático-probatório da demanda, o que encontra óbice nos enunciados das súmulas 5 e 7 do Superior Tribunal de Justiça”, afirmou Raul Araújo ao negar provimento ao recurso.
Maus-tratos
Casos envolvendo maus-tratos a animais também são analisados no STJ. Em 2017, a corte não conheceu de pedido de Habeas Corpus (HC 393.747) para um homem condenado a 3 anos e 2 meses de detenção em regime inicial semiaberto em razão de tratamento cruel de três cavalos.
Segundo os autos, os animais eram mal alimentados, submetidos a trabalho excessivo, chicoteados e apresentavam diversos ferimentos, principalmente o cavalo conhecido como Parceiro, que apresentava escaras por todo o corpo, atrofia muscular e lesão no sistema nervoso central. Os maus-tratos culminaram na morte de um dos cavalos.
No HC, a defesa pediu que a pena-base fosse reduzida. Ao não conhecer do pedido, o relator, ministro Jorge Mussi, destacou que a jurisprudência do STJ autoriza a fixação da pena-base acima do mínimo legal, quando fundamentada com elementos concretos extraídos dos autos.
“Nada impede que as circunstâncias concretas em que se deu a ação criminosa revelem peculiaridades que exorbitem a culpabilidade inerente à figura delitiva, como ocorrido in casu, em que foram evidenciados fatos que demonstram não só a crueldade, mas a extrema crueldade da conduta do agente, na medida em que, consoante ressaltado na sentença e no aresto recorrido, os animais sofreram maus-tratos das mais diversas formas, inclusive por meio de marteladas”, afirmou o ministro.